sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Van Gogh - O Suicida da Sociedade




Antonin Artaud - "Van Gogh - O Suicida da Sociedade"

(...)

Os corvos pintados nos dias que antecederam sua morte não lhe abriram, mais que as suas outras telas, a porta para a sua glória póstuma, mas abrem para a pintura o segredo da natureza não pintada, a porta oculta do mais além possível, de permanente e plausível realidade, através da porta aberta por Van Gogh repousa um enigmático e pavoroso mais além.
Não é frequentemente que um homem, com uma bala no ventre, aplique a uma tela corvos negros, e abaixo deles alguma espécie de textura, possivelmente lívida, de qualquer modo vazia, na qual o tom de mancha de vinho da terra bate-se loucamente contra o amarelo sujo do trigo.
Mas nenhum outro pintor, fora Van Gogh, havia sido capaz de descobrir, para pintar os seus corvos, esse negro de trufa, esse negro de glutonaria faustosa , e mesmo excremencial, das asas dos corvos surpreendidos pelos resplenderes declinantes do crepúsculo.
E de que se queixa a Terra aqui em baixo, encoberta pelas asas dos funestos corvos, funestos, sem dúvida, para Van Gogh, e além disso, funesto augúrio de um mal que já não há mais de concernir-lhe? Pois até então ninguém como ele havia convertido a terra nesse trapo sujo empapado de sangue, retorcido, a escorrer vinho.
No quadro há um céu muito baixo, emplastado, violáceo como as bordas de um relâmpago. A poucos centímetros do alto, e como se provenientes da parte inferior da tela, Van Gogh soltou os corvos, como se libertasse os germes negros dos seus desejos suicidas, seguindo a tarja escura da linha onde o esbater de suas soberbas plumas faz pesar sobre os preparativos da tormenta terrestre a ameaça de sufocação vinda de cima.
E, contudo, todo o quadro é soberbo.
Soberbo, sumptuoso e sereno.
Um digno acompanhamento para aquele que, quando vivo, fez girar tantos astros bêbados sobre tantas espigas rebeldes ao degredo e que, desesperado, com um tiro no ventre, não pôde deixar de inundar de sangue e vinho uma paisagem, encharcando a terra com uma última emulsão, radiante e tenebrosa ao mesmo tempo, que lembra vinho amargo e vinagre pontilhado.
Por isso o teor da última tela pintada por Van Gogh, o maior pintor de todos os pintores, é que, sem sair do que se denomina e é a pintura, sem apartar-se dos tubos de tinta, dos pincéis, do enquadramento do motivo e da tela, sem recorrer aos recursos anedóticos, ao relato, ao drama, acções com imagens, beleza intrínseca do tema e do objecto, chegou a infundir paixão à naturalidade e aos objectos em tal medida que qualquer conto fabuloso de Poe, Melville, Hawthorne, Nerval, Achim, d Arnin ou Hoffmann jamais poderiam supera-lo-lo, dentro do plano dramático, nas suas telas de dois centavos, as telas que, por outra, quase todas de moderadas dimensões, como se respondendo a um deliberado propósito.

(…)

Não preciso interrogar a Grande Carpideira para que diga de que supremas obras mestras se enriqueceria a pintura de Van Gogh, não tivesse o mesmo morrido aos 37 anos, pois não consigo acreditar que, depois de Os corvos , desejasse pintar um quadro sequer.
Creio que morreu aos 37 anos porque havia, ali, chegado ao término de sua fúnebre e lamentável experiência sendo garrotado por um espírito maléfico. Pois não foi por si mesmo, por efeito de sua própria loucura, que Van Gogh abandonou a vida. Foi pela pressão, nos dias anteriores a sua morte, desse espírito maléfico que se chamava Dr. Gachet, psiquiatra improvisado, causa direita, eficaz e suficiente da sua morte.
Lendo as cartas de Van Gogh a seu irmão cheguei à firme e sincera convicção de que o Dr. Gachet, psiquiatra, na realidade detestava Van Gogh, pintor, e que o odiava como pintor pois reconhecera nele um génio. É quase impossível ser ao mesmo tempo médico e homem honrado, mas é vergonhosamente impossível ser psiquiatra sem estar marcado a ferro e fogo pela mais indiscutível das loucuras: a de não poder lutar contra esse velho reflexo atávico da turba que converte qualquer homem de ciência aprisionado na própria turba numa espécie de inimigo nato e inato de todo génio.
A medicina nasceu dos males, e se não nasceu exclusivamente das enfermidades, ao menos provocou e criou o surgimento e o completo desenvolvimento da doença para ter uma razão de ser; mas a psiquiatria surgiu da turba plebeia dos seres que quiseram conservar os males, oriundos directamente da fonte de enfermidades, que foi desta arte arrancado de seu próprio vazio, como uma espécie de policia para liquidar na sua base o impulso de rebelião reivindicativa que está na origem de todo génio.
No alienado há um génio incompreendido que guarda na sua mente uma ideia que produz pavor, e que só pode encontrar no delírio uma válvula de escape para as opressões que a vida lhe apresenta. O Dr. Gachet não dizia a Van Gogh que estava ali para rectificar sua pintura (como me disse o Dr. Gastón Ferdière, médico chefe do asilo de Rodez, que afirmou estar ali para rectificar a minha poesia), mas mandava-o pintar ao natural, sepultar-se em uma paisagem normal para evitar a tortura de seus pensamentos. Como se não estivesse interessado, mas mediante uma dessas desrespeitosas e insignificantes torcidas de nariz, na qual todo o inconsciente burguês da Terra inscreveu a força ancestral e mágica de um pensamento cem vezes renegado e reprimido.
O Dr. Gachet não era psiquiatra, e sim médico de aldeia (coisa que bem sabia Artaud, e daí a sua classificação: psiquiatra improvisado). Praticava a homeopatia e a electroterapia, e era autodidacta em pintura. Em uma das suas cartas a Théo, de maio de 1890, Van Gogh diz: Creio que não se possa contar com o Dr. Gachet para coisa alguma. Acredito que está mais doente que eu. Em outra parte, acrescenta: Tenho a impressão de que é uma pessoa razoável, ainda que esteja tão desalentado com seu ofício de médico rural como eu, com a minha pintura. Para Artaud, o Dr. Gachet, ao improvisar-se psiquiatra converte-se na encarnação e no símbolo da psiquiatria. O importante não é o individuo incriminado (no caso, o Dr. Gachet), e sim a exposição de uma situação patética, onde o psiquiatra se transforma (por assumir uma posição falsa) em perseguidor consciente ou inconsciente do alienado.
Van Gogh, suspenso sobre o abismo do alento, pintava.
Pois era de uma sensibilidade terrível.

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O que mais importava no mundo a Van Gogh era sua ideia de pintor, o seu terrível fanatismo apocalíptico de iluminado. O mundo devia submeter-se ao mandado de sua própria matriz, retornar para o seu ritmo comprimido, anti-psíquico de festival secreto em lugar público e, diante de todos, voltar a ser posto em crisol requentado. Quer dizer: o Apocalipse, a consumação de um Apocalipse está neste exacto momento incubada nas telas do velho Van Gogh martirizado, e a Terra sente necessidade dele para ser revolvida em coices a torto e a direito. Não há nada que jamais tenha sido escrito, pintado, esculpido, modelado, construído, inventado, que não estivesse ligado a nossa pretensão de fugir ao Inferno. E para escapar do Inferno prefiro as naturezas desse convulsionário tranquilo, ao contrário daquelas formigantes composições de Breughel, o velho, ou de Jerônimo Bosch, que frente a Van Gogh são apenas artistas, enquanto ele um pobre ignorante empenhado em não enganar-se.
Mas como dizer a um sábio que definitivamente há algo desordenado no cálculo diferencial, na teoria quântica e nas obscenas e tão torpemente litúrgicas ordenações da precessão dos equinócios, frente a esse acolchoado de um rosa de camarões que Van Gogh faz espumar tão suavemente no canto elegido de sua cama, em frente da pequena insurreição de um verde veronês ou de um azul que empapa esse barco ante o qual uma lavadora de Auvers-sur-Oise é incorporada depois do trabalho, diante também a esse sol espiralado detrás do ângulo cinzento do campanário da aldeia, pontiagudo, e além, ao fundo dessa enorme massa de terra no primeiro plano da música, que procura a onda onde se irá cristalizar.
O VIO PROFE
O VIO PROTO
O VIO LOTO
O THETÉ

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Como descrever um quadro de Van Gogh? Nenhuma tentativa de quem quer que seja poderia equiparar-se à simples alienação das tintas e dos objectos naturais aos quais o próprio pintor se entrega, inteiro, tão grande escritor quanto pintor e que transmite, a propósito das imagens que descreve, a mais desconcertante autenticidade:

23 de julho de 1890
Talvez aprecies o meu estudo dos jardins de Daubigny é uma das telas nas quais trabalhei com mais afinco e incluo também um estudo de velhas choças, e mais dois de telas que representam imensas extensões de trigo após as chuvas... O jardineiro de Daubigny com um primeiro plano de ervas verde e rosa. À esquerda um mato verde e lilás e uma trepadeira de folhagem esbranquiçada. No centro, um maciço de rosas, à direita uma vala, um muro e por cima do muro uma nogueira de folhagem violeta. Segue um cerco lilás, uma fila de limeiras amarelas, a casa rosada, ao fundo, coberta de telhas azuladas. Um banco e três cadeiras, uma figura negra com chapéu amarelo, e em primeiro plano, um gato preto. Céu verde pálido.

(…)

Van Gogh foi o mais autêntico de todos os pintores, o único que não desejou exceder a pintura como meio estrito da sua obra, como marco estrito de seus meios. E, por outra, o único, absolutamente o único, que teria ultrapassado a pintura, o acto inerte de representar a natureza, para o surgimento, proveniente dessa representação natural exclusiva, de uma força giratória, de um elemento arrancado directamente ao coração. Reproduziu, sob a representação, um aspecto que brota e que encerra um estado nervoso que não está na natureza, que é de uma natureza e de um aspecto mais real que o aspecto e o estado nervoso da natureza verdadeira.
No momento mesmo em que escrevo estas linhas antevejo a cara ensanguentada do pintor surgindo na minha mente, saída de uma muralha de girassois arrebentados, numa formidável combustão de fagulhas de jacinto opaco e de ervas de lápis-lazuli, tudo isso no meio de um bombardeio meteórico de átomos que se destacam a cada grão, uma prova de que Van Gogh concebeu os seus quadros como pintor, unicamente como pintor, mas que seria por essa mesma razão um formidável músico.
Organista de uma tempestade contida que ri na natureza límpida, apaziguada entre duas tormentas, embora, como o próprio Van Gogh, essa natureza demonstre claramente que está pronta para partir.

(...)

As suas paisagens são antigos pecados que entretanto não tinham encontrado os seus Apocalipses primitivos, mas que, ao fim, não deixaram de encontra-los.
Por que as pinturas de Van Gogh dão-me a impressão de ser vistas como se do outro lado do túmulo de um mundo no qual, afinal de contas, tinham sido apenas seus sóis os únicos que giravam e iluminavam jubilosamente?
Pois não é a história completa do que um dia se chamou alma que vive e morre nas suas paisagens convulsionadas e nas suas flores?
A alma deu a sua orelha ao corpo, que Van Gogh devolveu à alma da sua alma, uma mulher, com o fim de revigorar a sinistra ilusão; mas um dia a sua alma deixou de existir, e também o seu espírito, enquanto a sua consciência não pensou mais nela, mas onde estaria, alem disso, o pensamento, num mundo unicamente formado por elementos em plena guerra, tão rapidamente destruídos e recompostos, pois o pensamento é um luxo da paz, e quem superará o inverossímil Van Gogh, pintor que compreendeu o lado fenomenal do problema, para o qual toda verdadeira paisagem está potencialmente no crisol, de onde se deverá reconstituir?

(…)


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