"Cânticos"
A Pedra Negra
Esta noite de inverno! Ouço-a a gritar!
Ouço-a a gemer baixinho...
E tem negros silêncios abismáticos,
Desertas amplidões
E trevas marulhantes que se espraiam,
Nos longes do infinito, em litorais
De pérolas acêsas...
Scismo, junto do fogo, mergulhado
Em vagos pensamentos dolorosos...
São espectros que dentro em mim vagueiam,
Como à luz da candeia, a minha sombra,
Nas lívidas paredes...
Ainda a noite a queixar-se, num clamor
De mágoas tão profundas,
Que no meu coração se liquifazem
E em lágrimas afloram nos meus olhos...
Mas cáem-me, outra vez, no meu coração.
Ignota dôr das cousas! Dôr sem nome,
Que ninguém soube traduzir ainda!
Só a estátua dum Dante que falasse
Aos ventos da loucura!
Scismo, junto ao fogo, alheado e triste.
Ardem-me os tornozêlos, e que frio
As costas me congela! Estas antigas
Lareiras não aquecem.
Deixam entrar o zimbro as têlhas soltas;
E em noites de silêncio,
Uma réstea de lua que se espalha
Nas brisas quási extintas,
Como chagas vermelhas a sarar.
Dir-se há que o próprio inverno a escorrer água,
Vem sentar-se, cançado, ao pé de mim;
E estende as mãos de neve sôbre as chamas
Que, perturbadas, deitam negro fumo,
Como as chamas do inferno, quando nelas
Se precipitam, loucas de aflição,
As almas condenadas...
E fico, absorto e triste, a ouvir o vento
Gritar os seus remorsos,
Nesta soturna casa onde nasci,
Onde fui dado à sombra e não à luz,
Porque, nascer, meu Deus, é já morrer,
O berço é já sepulcro.
E fico absorto e triste. Vejo o lume
Que se extingue, por fim. As chamas débeis
Rastejam sôbre o tronco requeimado,
Quais asas debatendo-se na morte...
Embranquecem de frio as brasas rubras
Que o sôpro dum fantasma ocultante
Parece reavivar...
Lá fora, o vento adormeceu. A chuva
Nas escadas de pedra vai caindo,
Em ais humedecidos e murmúrios
Não sei de que tristeza...
E fico absorto e triste, contemplando
A solidão gelada...
Vejo-a crescer conforme a cinza cresce
Na pedra negra e morta da lareira.
Cresce também a sombra; e nos recantos
Escuros se desenham
Aparições de mortos que eu amei
E partiram, cansados, dêste mundo,
Pouco tempo depois de eu ter chegado,
Velhinho e pequenino, duma estranha,
Fantástica viagem...
Que multidão no espaço do meu lar!
Que multidão enorme e que deserto!
Ó sempiterna ausência de meu Pai!
Que frio e que tristeza, neste grande
Enegrecido lar desconfortável,
Como esta velha casa de abandôno,
Sempre aberta ao luar das horas mortas,
Ao silêncio da noite, aos êrmos ventos,
E às sombras outonais... Ó minha casa
Sepultada num lívido crepúsculo
Que são vagos fantasmas confundidos
Na mesma nódoa escura... E nele pairam
Êrmas vozes que eu ouço e ninguém ouve,
Aparições que eu vejo e mais ninguém,
Visões que só meus olhos incendeiam
E neles deixam rastos espectrais
E lágrimas de dôr...
A derradeira
Faúlha viva apaga-se na cinza,
A candeia de azeite bruxuleia,
Espalha tons de palidez na sombra,
Onde o meu vulto humano se consome,
Como um esbôço antigo... De repente,
Um grilo canta!... Uma vozinha alegre
Do estilo, em pleno inverno... E fico triste...
Lá fora,a noite é mais pesada e muda,
Onda negra que alaga todo o espaço,
E na suprema altura se desfaz
Em turbilhões de espuma luminosa.
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