"Cânticos"
O Caminho
Sou um velho caminho,
Aberto em tenra argila e duros fragaredos.
Passam por ele o triste, o doido, o pobrezinho,
Sonhos, delírios, mêdos,
A dôr sempre a gritar, a mágoa emudecida
E o frio vento norte...
Passa o perfil banhado em luz da vida,
Passa o esqueleto trágico da morte.
E um anjo quimérico figura,
Todo resplandecente de brancura,
Sôbre ele pousa os pés de mármore tão leve!
E mostra, à luz do luar, a túnica de neve.
Passam êrmos e estranhos personagens,
Aparições, imagens
De Dante e de Vergílio, divagando
Na escuridão do inferno.
E passa o outono um lírio desfolhando...
E o desolado inverno.
E a primavera passa,
Num sorriso espalhando etérea graça.
Passam virgens humildes, de mãos postas,
De olhos azuis no céu;
Passa Jesus levando a negra cruz às costas.
A terra treme, o sol escureceu,
Ouve-se o mar em lágrimas desfeito...
E passa Madalena enlouquecida, aos gritos!
Almas mortas de angústia e corações aflitos
E Maria que tem sete punhais no peito.
Passa um vèlhinho e triste peregrino;
Longa barba a comer-lhe os ossos da caveira.
Cinge-lhe a escura fronte um resplendor divino.
Vem lá das longes terras do Passado;
Traz o manto coberto de poeira
E a cabeça vazia, ao alto do cajado.
Passa a dôr a tristeza, o desespêro;
O espectro de Camões, o de Agostinho e Antero;
As três faces eternas da Elegia
Que dentro em nós murmura, sonha e reza;
Crepúsculo divino a anunciar o dia
Que há de doirar ainda a terra portuguesa.
Sou antigo caminho em fraga aberto,
Ao longo dum deserto
E de nocturnos cêrros montanhosos
E de negros espaços fabulosos...
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